Com a "Quatrelle", nome pelo qual viria a tornar-se popularmente conhecida, a Renault quis criar um veículo polivalente e barato, que, por via disso, fosse também popular.
Um carro que pudesse concorrer com o Citroën 2CV.
Ao contrário do Volkswagen Beetle ou do Mini, fruto da obra genial de dois grandes senhores da história do automóvel, o Renault 4 é produto do trabalho de uma equipa.
E, sim, da vontade de um homem: Pierre Dreyfus.
Dreyfus, que era na altura o presidente da Regie Renault, ordenou ao seu departamento criativo:
"Quero um veiculo que seja como um 'blue jeans', totalmente versátil, para toda a ocasião e que não passe de moda..."
E décadas passadas alguém duvida que o Renault 4 passe algum dia de moda?
E o caderno de encargos era bem simples: devia ser "um carro diferente e cómodo", que servisse "para todo o trabalho e com quinta porta traseira".
Capaz de agradar "a todos os clientes do mundo com poucos recursos", sintetizou o presidente da Renault.
Além de multifacetado, adaptável a todas as ocasiões e necessidades, o novo veículo queria-se com uma estética intemporal.
Ainda hoje são linhas inconfundíveis e fortemente personalizadas.
O resto já sabe quem tem ou já teve uma Renault 4: tem uma concepção simples, mas é fiável e terrivelmente versátil nos mais variados tipos de terreno.
O que talvez poucos saibam é que o Renault 4 continha algumas inovações geniais quando surgiu.
Algumas vieram a fazer escola na indústria automóvel:
- Uma quinta porta ampla com abertura vertical;
- Um plano de carga plano e isento de arestas;
- Um circuito de refrigeração hermético e selado;
- A supressão dos pontos de lubrificação para facilitar a sua manutenção.
Vamos então conhecer a história deste veículo revolucionário.
O sucessor da "joaninha"
O número "4" parece ser mágico para o construtor francês.
Porque pouco tempo depois de terminar a II Guerra Mundial, a nacionalizada Renault lançou um modelo que gozou de enorme simpatia.
Sim, chamava-se Renault 4 CV mas é vulgarmente conhecido como "Joaninha".
Nos finais dos anos 50, o Renault 4 CV custava cerca de 399 mil francos franceses. O Citroën 2 CV ficava-se pelos 346 mil francos.
Pierre Dreyfus não escondeu o objetivo:
No caderno de encargos foi estipulado que o novo automóvel deveria poder ser vendido por 350 mil francos.
Da quinta porta à ausência de eixos
E agora vamos entrar no campo que marca a genialidade da concepção deste grande carro.
Olhemos para que mais havia no seu caderno de encargos.
Comecemos pelo nome: "Projecto 350", para que os engenheiros não esquecessem o preço a que deveria ser vendido aos franceses.
Deveria ser robusto. Mais confortável e com mais espaço interior do que o Citroën 2CV.
Fiável e versátil nos mais variados tipos de piso, já o referimos, e, como qualquer carro que pretenda ficar para a história, ter uma estética que não passasse de moda.
Para aqui chegar desconstruiu-se e inovou-se.
Comecemos pela famigerada quinta porta. Parece banal? Não existia na altura. Mas sabem que dez ou quinze anos depois era raro o modelo popular que não tivesse o mesmo tipo de abertura traseira?
Um plano de carga isento de arestas? Como era possível sem elevar a sua altura ao solo ou sacrificar espaço?
Para consegui-lo o Renault 4 tem rodas independentes. Não há eixo traseiro e, para resolver a questão do equilíbrio, há um facto intrigante e provavelmente ainda hoje inédito: a distância entre eixos é 48 mm maior do lado direito.
Ou seja, a distância entre a roda da frente e da roda traseira é 4,8 cm maior do lado direito.
Na suspensão traseira aplicaram-se barras de torção transversais e os amortecedores foram colocados numa curiosa posição quase horizontal.
E para obter um habitáculo mais amplo rapidamente se concluiu que tanto o motor como a transmissão deveriam ser dianteiros.
Parecem simples, se calhar até algo rudimentares estes truques de engenharia mecânica.
Parecem. Mantiveram-se praticamente inalterados durante toda a vida do Renault 4 e seriam a razãodo à-vontade e da robustez que muitas Renault 4 ainda hoje revelam.
E foi assim porque subjacente havia outra vontade: o carro teria de demonstrar o mesmo tipo de comportamento fosse o piso que fosse e transportasse a carga que transportasse.
E o leitor agora pensa: já não se fazem carros assim! É verdade!
Vamos ao motor.
Primeiro pensou-se em criar um novo motor de dois cilindros com cerca de 600 cc.
Mas a escolha acabou por recair no motor de 747 cc que equipava o "joaninha". Afinal, era a mais económica e fiável das soluções.
Quanto à transmissão, a caixa tinha três velocidades mas a segunda e a terceira eram sincronizadas.
E depois aquele peculiar comando bem ao centro do tablier. Mas era a forma mais económica de comandar a caixa de velocidades e... bem, é verdade que tem uma posição em tudo semelhante à do não menos famoso 2CV...
Além de suspensões flexíveis, o R4 tem outras inovações: um circuito de refrigeração hermético e selado, com um líquido especial colocado uma única vez na altura da montagem.
Foi também o primeiro a suprimir os pontos de lubrificação, adoptando rótulas esféricas, bem como juntas e articulações em borracha e grafite.
Ou seja, para a manutenção periódica da viatura, bastava verificar e atestar apenas o nível do óleo do motor e da caixa de velocidades.
E para andar alguma gasolina, claro...
Que carro bizarro é este?
Os primeiros protótipos entraram em testes no final dos anos 50 do século XX.
Os ensaios decorreram nas mais variadas situações, qual delas a pior.
Do mau piso da Sardenha ao frio do estado norte-americano do Minesota, passando pelo calor árido do deserto do Sahara, os protótipos da Renault 4 foram submetidos às mais duras condições.
Será por isso que ainda hoje resistem?
A verdade é que, quando o empregado de uma estação de serviço norte-americana viu o novo modelo, exclamou:
"Que tipo de carro se esconde por debaixo desta camuflagem tão estranha?"
Não havia camuflagem.
Convenhamos que a aparência era realmente inédita para a altura. Talvez até deselegante, provavelmente até haveria quem o considerasse um carro bizarro.
A razão principal era a secção traseira quase vertical.
Para surpresa de muitos, desde logo o Renault 4 mostrou-se capaz sobre qualquer tipo de terreno. Surpresa porque a fraca potência do motor e a tração dianteira pareciam ser fatores inibidores de grandes aventuras.
O nome escolhido - "Renault 4" - provém aos 4 cavalos fiscais que o classificavam em França, o seu país de origem.
Mas a reação dos concessionários e representantes da marca foi de grande desagrado.
E de total descrédito: um carro com aquela forma jamais se venderia.
Achavam eles: foi produzido durante 31 anos e, com poucas alterações, sobreviveu a muitos carros, incluindo da Renault, que surgiram bem depois da tão querida quanto famosa "Quatrelle"
Forte e inédita campanha promocional
O ano de 1961 assinala o fim da produção do Renault 4 CV (joaninha).
Escolhidos para o sucederem foram o Renault 3 e o Renault 4.
Tanto descrédito exigia uma forte aposta na campanha de lançamento do novo modelo.
A 3 de Agosto é oficialmente produzido o primeiro Renault 4.
Na apresentação à Imprensa, foram propositadamente escolhidos os percursos mais duros.
As opiniões dificilmente poderiam ser mais favoráveis!
O público conheceu-o no Salão Automóvel de Paris de 1961.
E, claro, também aqui uma inédita ação promocional: na exposição, o carro podia ser experimentado num circuito de todo o terreno contíguo ao salão.
Já em Paris, os franceses eram convidados a dar uma volta com o carro, por onde quisessem, ao longo das ruas da capital.
Este tipo de lançamento de um novo automóvel não era habitual na altura. Nem a criativa campanha publicitária criada para o lançamento do Renault 4.
Carisma, moda e sucesso
Ao longo dos 31 anos de produção conheceu inúmeras versões.
Todas elas atestam o carisma, a versatilidade de espaço e da condução, mas também a fácil e pouco dispendiosa manutenção.
É isto que justifica o sucesso do Renault 4.
Este carro foi ator de cinema, um viajante convicto, uma ferramenta de trabalho, um companheiro de férias.
Um missionário em África, um camelo do deserto, mas também um aristocrata em Paris, em Londres, em Roma, em quase todas as capitais do mundo e trilhou todas as cidades e aldeias de Portugal
Ainda o faz.
Mas não só.
Foi também, para grande espanto de muitos, um caso sério de longevidade no desporto automóvel.
Quantos carros com tantos anos de história competiram no Mundial de Ralis no final dos anos 90 do século XX?
E com um piloto português a dirigi-lo?
António Pinto dos Santos ao volante. Uma decoração a condizer e eis um carro considerado "bizarro" à nascença a ser um dos mais fotografados a cada passagem e um dos mais procurados em cada assistência.
Que, apesar das prestações modestas, raramente foi obrigado a desistir, chegando ao fim na maioria das provas em que participou.
O "blue jeans" de Pierre Dreyfus cumpriu a sua função. Impôs uma moda e um estilo que poucos automóveis podem orgulhar-se de ter conseguido! |
CURIOSIDADES!
Os planos para aquela que seria a segunda geração do R4, começaram ainda antes da primeira ter sido lançada.
De forma ousada, os primeiros protótipos apresentavam uma orientação estética oposta ao grande sucesso estilístico do mercado francês da altura: o Renault Dauphine.
O Renault 3 CV que existiu no início possuía motor de 603 cc e 22,5 cv.
O bloco era o mesmo mas tinha cilindros de menor diâmetro.
3 CV era a sua potência fiscal. Serviu no mercado francês como o concorrente mais direto do Citroën 2 CV.
Praticamente em simultâneo à versão de passageiros, foi criada uma outra essencialmente de carga: a Fourgonette ou F4.
Além da originalidade do conceito de pequeno furgão, a R4F inovou também com uma pequena abertura na parte traseira do tejadilho.
A "girafon" ganhou este nome porque nos primeiros anúncios ao modelo, era utilizada uma girafa para demonstrar a utilidade desta porta no transporte de objetos mais longos.
Houve ainda uma variante de passageiros desta carroçaria que hoje é bastante procurada.
Desde modelos descapotáveis a jipes (chegou a existir uma versão de quatro rodas motrizes), de carrinha de caixa aberta até um pseudo Fórmula 1!
Tal como o Renault 4 é, a publicidade era também simples mas eficaz.
Um comunicado da altura descrevia assim o modelo: "não interessa o quanto se puxe por este motor, ele nunca demonstra stress".
Com mais de oito milhões de unidades é um dos carros mais vendidos de sempre.
Mas menos de sete anos depois do lançamento, já o construtor procurava um sucessor.
A intenção nunca foi publicamente assumida, provavelmente porque o Renault 6, lançado em 1968, nunca conheceu a mesma popularidade do Renault 4.
Conheceu inúmeras versões.
Uma das mais elegantes surgiu cerca de dois anos depois e foi denominada Parisiense.
A promoção, lançada em conjunto com a revista Elle, foi um claro piscar de olhos à potencial clientela feminina.
Não tivesse a carroçaria da Renault 4 revestida com um tecido em tom palha ou padrão escocês...
Se procurarmos um paralelo de sucesso na história do construtor francês, o exemplo mais próximo é o do Renault 5, lançado em 1972.
Há uma história curiosa em redor da concepção do Renault 5, directamente relacionada com o Renault 4.
O R5, conta-se, nasceu quando um dos projetistas da marca francesa, encontrou, por acaso, uns esquemas do R4.
Começou a desenhar por cima dos esboços, arredondando as arestas, quando subitamente reparou que tinha criado um novo carro.
Embora mais baixo, mais arredondado e mais aerodinâmico, apesar de ser mais compacto, conseguia ser amplo.
Os directores da marca francesa adoraram o resultado.
Tanto assim que em dois dias estava construída uma maqueta em tamanho real.
Em comparação foram precisas 27 maquetes para chegar à forma definitiva do R6!
Como outros modelos icónicos - Volkswagen Beetle, Mini ou Fiat 500 - o Renault 4 chegou até aos nossos dias.
A sua produção foi descontinuada em 1992.
Em 1997 a Renault apresentou o Kangoo e quis estabelecer uma ponte com o seu modelo mítico, o R4.
Além da forma, de novo uma porta fazia a diferença. Desta vez era a lateral.
Curiosamente, o Kangoo aproximava-se da forma e do conceito de outro carro lançado pouco tempo antes.
Talvez não por acaso esse carro era um Citroën...
O Berlingo.
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